top of page

Conto Premiado

 

O ANDARILHO

O ANDARILHO

          Mas, é certo, Antônio Prachedes bateu as botas. Era um homem de anedotas, de muita lenga-lenga. Prachedinho sabia as artes de embromar, do convencer, e não era, a bem de tudo, enganador. Vivia do que a saliva lhe somava. Tino autêntico, desenvoltura e largueza no frasear. Revirava o sertão qual criança num quintal. Antônio Prachedes, era, por si só, o único, sem malquerença, sem inimigo onde quer que fosse, o de sempre – Prachedinho.
 

          Lembro-me de uma vez – ah, faz tanto tempo! – que o dito buliçoso, em delírio nada modesto, pegou-nos, é certo, desprevenidos. Por esse tempo, o Gameleira era vila, arrastava-se sem acordo do tempo, sem engrenagem. Prachedinho e eu éramos jovens. Tínhamos tutano, mas fazíamos pouco caso – uso mínimo.
 

          No alpendrado da casa de meu pai armavam-se muitas redes, dezenas talvez. Prachedinho tinha lugar fogoso, de destaque, era de casa.
 

          Chegou. Como sempre, apeou-se da mula, laço na estaca, e uma risada do tamanho do pátio. Dizia um troço, emendava outro, desatava-se no riso. Não que fosse tolo. Não, isso não. Mas é que nesse dia, mais que em outros, sua intenção era esbanjar-se. Ia enforcar-se; casar, eu digo. Ninguém acreditou. Ora, Prachedinho era das estradas, das veredas, dos descaminhos agonientos do sertão. E a gargalhada foi uma só. Minha mãe deu-lhe as costas, num desprezo faceiro, que lhe tapou os brios:
 

          - Ora, essa, homem! – destemperou minha mãe. – Como havéra tu de se arrumar com uma pessoa só? Diga! Largue de lambança e vem comer, que já são horas.
 

          Mas não era brincadeira. Daí a um ano tornou-se pai; no seguinte, separados. Desavenças e desconfianças. Um desmantelo. Foi um tempo de alvoroço e decrepitude moral. Contudo, não perdeu a postura de bom camponês. Foi deixá-la na casa dos pais. Isso era de regra. Da mesma forma como tinha ido buscar para recurso de duas, uma só criatura, no matrimônio, agora desfazia o laço.
 

          - Não me teve serventia, Seu Arlindo. Dor de cabeça, por demais...
 

          Então, largou-se estrada afora, refeito, noviço, um sujeito que retomava o prumo. Vendeu o rancho, comprou outro às margens do rio Taquara, ainda terras do Sabiá Tinhoso. Recomeçou ardente, lépido, assim como quem acorda de um tresvario. Entendia de curas, rezas largas, trincheiras do mistério, o insofismável. Atado a isso, vinha também a arte medicinal – remédios caseiros. Coisas da própria estirpe. Arrancava ervas, dissecava-as com regalo de perito. Herança dos ancestrais.
 

          Curou muitas criaturas, serviu a Deus, no seu dizer. O coronel Osório o defendia com aperturas calorosas. Dava de seu, como a um filho; ou mais, mais ainda.
 

          Tempos depois, Prachedinho se incumbiu de tratar da filha do coronel, deixou-a taluda e airosa. Pois não é que a remediada se embeiçou pelo curandeiro, assim, destrambelhadamente!


          Aperreado, Prachedinho garatujou meias palavras ao ouvido, como sendo: “Apois lhe digo, dona”, e disse, “com uma dou por última. A derradeira...” e por largo tempo, desmesurado, não deu vistas no Canteiro-Mor, propriedade do coronel Osório.

 

         Este, campeou-o rasteiro, mas nunquinha que ficou a saber do seu roteiro, nem do bem-querer da filha, que, com tempo miúdo, bem franzino mesmo, dividia núpcias com o Nequinho Ribanceira, – vejam só! – sobrinho do nosso ervista!
 

          Mas tudo isso que despejo é rodeio para o miolo central, que agora desmonto. Pracedinho caiu doente, lá em casa de meus pais. Febre cruenta, sem convencionais distúrbios, coisa estranha de se ver. Ele próprio se valia dos seus achados, sem achar melhora. Já de olheiras assombrosas, amarelo, e todos imbuídos numa preocupação comum. Mãezinha ficou num desconsolo de varrer juízo, de nós todos, pois Antônio Prachedes já não comia, magro, açambarcado que estava pelo mal, moído, frangalho de gente – nada do seu jeito zombeteiro e brincalhão.
 

          Por todo o sertão corria o disse-me-disse que o Prachedinho estava em agonia, por um fio no seu viver.
Aí, então, chegou, numa tarde, um senhor de barbas longas, óculos escuros, vestido de branco, dizendo-se curador: médico, no seu informar. Deu ao doente, na mesma hora de chegada, um xarope violento, que o ex-ervista tomou de mau-gosto, subindo pelas paredes, urrando feito fera acuada, mas sem escapar uma gota.

 

          O de barba se aboletou em casa mesmo, troncudo, sem falar com ninguém. No terceiro dia Prachedinho sentiu efeito, deveras. Embora sem a alegria costumeira, esforçou-se para rir. Acompanhei o barbudo na tarde do quinto dia, seguindo-o quarto adentro, segurando a bandeja. Então se deu o inesperado.
Prachedinho argumentou:

 

          - Doutor, esse remédio não me é estranho. Por que não me conta a origem dessa mezinha?
Enquanto proseava, o doutor se servia na janela com um espelho, raspando os cabelos da cara. No insistir do doente, eis que, sem barba e livrando-se dos óculos escuros, reconheci, e o Prachedes também, que o dito ervista, novato na freguesia, outro não era senão o coronel Osório.

 

          E disse:
 

          - O que eu dei a você tem muito a ver com o que foi dado à minha filha. O efeito da primeira etapa é evidente, você está bem melhor. Não quero, contudo, o efeito da segunda: paixão pelo ervista.
 

          E o ex-moribundo desatou a gargalhar, satisfeito de tudo, renovado e são.
 

          Não foi daquela vez, mas o Prachedinho, hoje, é com Deus.

      O Cordel tem feito coisas               Sinto que a Literatura

      Que me deixam espantado            Tem cumprido o seu papel

      Atravessando fronteiras                Façam lá seus versos brancos

      De modo determinado                    Produzidos a granel

      Instalou-se no Nordeste                Mas prefiro rima e métrica

      Aqui fundou seu reinado               Nos meus versos de Cordel.

                                    

                                   ((( Francinilto Almeida )))

bottom of page